Escritos de curadoria<br/>

Carlos Lin

Pra Você: O mistério enunciado pela palavra, texto perdido da ponta da língua.

Referência Galeria de Arte. Novembro/2024

Acabei de ler, não sei se em alguma postagem do Instagram, que uma rede é um monte de buracos amarrados com barbante. Outros diriam, tomados pelas diferenças possíveis de perspectiva ou de referenciais adotados, que uma rede é uma malha de fios formando um padrão. Independente do que a linguagem possa nos indicar para dar sentido à coisa, está lá o objeto, como presença e ausência em seu mesmo tempo de existência.

Recordo-me da primeira vez que olhei e vi, de verdade, os trabalhos de Carlos Lin. Eles já existiam, mas, de alguma forma, eu não os tinha percebido até quando chegaram a mim, já para analisá-los. Não era na condição de espectadora, que observa e presencia o que se apresenta, e sim na função de quem emite um parecer sobre a obra. O ano era 2010. Abri o envelope e me deparei com uma longa série de fotografias, que formavam uma instalação. O título era “a pele do mundo” (2005-2010). Eram fotos de nuvens. Sobre elas estavam fincadas finas agulhas. Eu me lembro que fiquei um bom tempo olhando para o trabalho, um tanto fascinada pelo problema que as fotos me propunham: o que aquelas agulhas, que remetiam à acupuntura, estavam fazendo ali posicionadas sobre imagens de nuvens? Que corpo era aquele que precisava ser cravado em seus meridianos? Qual dor motivava o artista a produzir?

O ano é 2024 e outras nuvens de Lin surgem no meu horizonte para observação, agora como objetos de curadoria, junto com um largo conjunto de obras. Mencionadas pelo artista em nossa primeira conversa estavam as “nuvens baixas” (2024), a serem vistas e contempladas para preparar a exposição. Achei a conexão temporal curiosa. Tantos anos depois e ressurgem nuvens. O artista, como sujeito do seu tempo, revê o já visto por outro lugar, como quem está redefinindo a sua prosa; porém, ao mesmo tempo, dando a entender que há um atavismo relacionado ao processo de fazer arte. “Nuvens baixas” são volumes semicirculares de madeira, dispostos sobre o chão; veios da madeira expostos, lembrança da origem antes do corte. Junto a esse grupo de ‘nuvens’, outras foram criadas com o nome de “nuvens altas” (2024), objetos suspensos, esferas trançadas de variados tamanhos, feitas de fibra de palmeira que, em meu entendimento, são o fio da linha que se conecta com todo o conjunto de obras que constitui um corpo. Um corpo de fibras da palmeira, de bagas de ipê, de flores secas, de buchas, de folhas.

Atualmente, Lin mora distante do centro urbano, em zona rural, dentro de uma área de conservação ambiental e essa conjuntura de vida aprofundou aquilo que já estava presente em seu pensamento como artista envolvendo a terra, a vegetação, a observação do entorno e a coleta do que está disponível na paisagem campestre. O olhar quase inato de quem teve uma infância bulindo na argila, num lugar próximo de onde morava, parece permanecer. Relevante citar sua fala em entrevista que fizemos onde ele diz que “o mato me apresentava deslumbramentos diferentes e eu gosto ainda disso”. Já havia indícios desse interesse pelo ambiente natural para o desenvolvimento de sua produção na década de 1990, quando a sua atividade como artista começa a tomar impulso. Já estavam lá as buchas, as flores e o olhar atento para o fogo no cerrado. Vislumbrar a existência de um cordel que une as partes dessa trajetória torna muito profícua a análise que envolve o seu desenvolvimento poiético.

No entanto, não se pode deixar para lá as outras facetas que constituem o homem e o artista e que incidem sobre o fazer no processo de elaboração de conceitos, pondo sob outros pontos de vista aquilo que poderíamos caracterizar, até este momento, como uma narrativa primordialmente conduzida pelo aspecto artesanal da produção artística, i.e., voltadas ao trabalho com a matéria-prima bruta e com a repetição de padrões. Porém, a mirada da obra sobre esse aspecto do fazer e do uso da matéria não exaure o assunto, pois há, em cada produção artística, questões conceituais a ela alinhadas. No caso de Lin, engendram-se à obra as singularidades que decorrem de sua formação acadêmica e intelectual, constituída, especialmente, pelos estudos em Filosofia, História, Psicanálise e Semiótica, incidindo sobre suas idealizações e práticas.

O subtítulo da exposição “o mistério enunciado pela palavra / texto perdido na ponta da língua” sugere, depois da oferta contida no título “pra você”, a abertura para o enigma contido na forma, na aparência, na estampa. As flores que ornam cabeças e ocupam mãos, apresentadas nas fotografias (“oferendas 35”, 2024, “xico 7”, 2022, “ciclope 5”, 2024) adjetivam a oferenda, mas não são entregas fáceis, e isso está indicado pelas imagens dos rostos sombreados e pelas mãos solitárias que só revelam um traço do corpo. Aliás, em todo o conjunto das obras que se apresentam nesta exposição está o rastro do corpóreo, indicando a presença do artista como múltiplo, algo que pairou durante o tempo em que se esteve elucubrando – como um mote - sobre como se constituiria a exposição por meio da ideia de reunir as produções como uma “coletiva de um só artista”. A alusão à presença do artista parece óbvia, pois há materialidades (obras) que se manifestam como decorrência de operações manuais e que são de sua autoria, mas não é unicamente disso que se trata: é mesmo da constituição de uma linguagem que assume a existência de relações - filosóficas, psicanalíticas, semânticas - que transformam a substância para além do seu estado natural, mas, ao mesmo tempo, dela não se desgarram.

Nas alterações de estatuto da forma que aparecem, para o artista, como enunciados, me parece estar a chave que pode resolver ou não o mistério que se enuncia e que as obras de arte abarcam. Em algumas delas, a aproximação fenomenológica basta para dar conta do desejo de esclarecimento, como a cortina com bagas de ipê verde, nominada de “cachoeirinha 1” (2024), que está ali como parte da vontade do artista, de que o público visse e com ela interagisse, passando através dela e causando um efeito sonoro que, a mim, remete ao som da chuva. Há também o convite a se entrar em um estado mais contemplativo, frente a obras como “paisagem com capim” (2015), uma composição em alto relevo, com esteira, capim, terra e cola; “pequeno jardim no fundo do açude seco 2 e 3” (2024), com placas em relevo de adobe pintadas e flores secas e “herbário 1, 2 e 3” (2019, 2022 e 2024), objetos com bucha e flores secas. Em outras obras, o enunciado se declara reelaborado em conexão ao pré-existente na cultura erudita, como em “brancusiana 3” (2024), em referência à escultura Coluna Infinita (1937-1938), de Constantin Brancusi e em “Volpi 1 e 2” (2016), dois objetos que lembram as conhecidas bandeirinhas (ou o retângulo subtraído de um triângulo) do artista que dá nome à obra.

Contudo, não fosse a memória do corpo distribuída entre muitas das obras, a tarefa de dar sentido às coisas talvez se apresente com mais facilidade, enganando quem acha que a matéria prima natural seria sinônimo de simplicidade, tornando a empreitada descomplicada, ainda mais sob a mira do artista. As incursões de Lin no meio natural resultam na formulação de várias corporealidades, realizadas como um convite à rememoração do ancestral, lugar primordial que já foi apagado da consciência. Foram traduzidas em objetos, desenhos e vídeos, constituindo parte de suas enunciações: o corpo da mãe que se manifesta em seu aspecto simbólico mais profundo para a existência psíquica do sujeito que sãos os seios (“aos eternos peitos de minha mãe 1”, 2024); a máscara, aludindo ao rosto que se esconde ou se transforma para performar um outro ou uma história (como as contadas em tempos remotos para explicar ocorrências naturais) e que retornou como adereço social em razão da pandemia, momento em que a primeira máscara foi realizada (“máscara 1”, 2021, “máscara 4”, 2022, “máscara 15, 16 e 17”, 2024); a memória de um corpo em formação, apresentado como invólucro nos “grandes casulos 1 e 2”, 2021, estruturas cônicas suspensas, trançadas com fibras de palmeira; o corpo sexuado e as menções à existência da sexualidade na natureza presentes nos desenhos, onde vemos urdido o sexo no interior da estrutura das flores, traçado naturalisticamente e introduzindo de maneira capiciosa, porque sutil, a sua vinculação simbólica com a sexualidade humana (“flores genitálias 9, 10 e 11”, 2016). Também vinculado ao tema, há o objeto intersexo que anuncia a exposição pelo que nele há de conjugação de forças femininas e masculinas. Um objeto que incorpora os órgãos de ambos os sexos tramado em fibra de palmeira, cuja materialidade natural assinala, mais uma vez, a presença do ser vivente que há na terra sublinhada pelo que lhe deu origem (“eu e ela: junção tântrica”, 2023).

A alusão ao tantra que o título da obra supracitada indica, denota um pouco disso tudo que a exposição mostra em meio ao universo das obras selecionadas: não se trata de separar, mas de conjugar os estados do ser pela arte, seja pela ótica da consciência, da inconsciência, da existência ou da sexualidade, a todos os estados sob a força da natureza do cerrado. Entretanto, isso não significa a chegada a algum lugar que se possa, efetivamente, nomear como total absoluto. A procura frustrada pela própria imagem no espelho que aparece na obra “o meu espelho é cego” (2024), estrutura circular tramada em fibra de palmeira, pode retornar como uma visão idealizada de si ou como quimera. O artista, tendo a arte como lugar de prática, pode ampliar essa visão de si próprio para além da estampa. A série “antinarciso”, iniciada em 2019, desenvolve, como o nome atesta, a negação de uma determinada (e deleitável) imagem. Diz-se que a vida de Narciso seria longa caso ele não contemplasse a própria imagem. As formulações poiéticas que se seguem, para compor o que o prefixo “anti” revela, apontam para o lado contrário de uma visão de si mesmo como outros e reforçam a ideia sinalizada pelas demais obras de que o corpo é manifestação múltipla e fragmentada. Assim, surgem apresentações de personagens que Lin performa, como autorretrato – fotográfico ou desenhado – e em vídeos; segundo ele, como “(...) um ser paradoxal, meio bicho, meio homem, meio natureza, meio cultura, que recebeu o nome de quadrúpede ruminante”.

Nesta mostra, o ato de oferecer, prometido pelo título, se coaduna com a ideia de “texto perdido na ponta da língua” e corrobora a ideia do ruminar, ação à qual o artista associa à imagem do personagem de “antinarciso”, um tanto humano, um tanto animal. O ato de ruminar é, ao mesmo tempo, relativo a uma prática humana em que algo se considera e reconsidera - numa espécie de repetição interminável – como está também associado aos animais que remoem os vegetais que ingerem, regurgitando e remastigando o alimento, para absorver o máximo dos seus nutrientes. Esses dois aspectos, que englobam racionalidade e instinto, são índices da existência dos seres viventes para os quais o artista olha.

Porém, como nos assinala a obra “daquilo de que sou feito”, 2019 - uma mescla de materiais naturais, como esteira, rede, peneira, cabaça, folha de pata de elefante e fibra de palmeira - há mais do que se possa imaginar, ou mesmo nomear, inserido na dimensão do visível da existência. A peça resulta em uma espécie de presença metafísica (se assim podemos caracterizá-la) que, disposta no fundo da galeria, guarda a exposição como uma lembrança de que somos matéria bruta, burilada pelo transcorrer dos tempos e dela constituídos.

O artista, ciente da magnitude, mas também da fragilidade do meio-ambiente, reestrutura a natureza do seu presente e embrenha-se por regiões aonde a consciência não chega e a linguagem não alcança.

Renata Azambuja

Nov./2024