iracema barbosa
(Exposição realizada em conjunto com Bárbara Paz, Cecília Lima, Gisele Lima, Gustavo Silva Amaral, José de Deus, Luciana Ferreira e Rômulo Barros)
(texto para catálogo)
As formas da experiência/visualidade tátil
Dentro,
Fora,
Fundo,
Vagaroso,
Calmo,
À vontade,
Sorrir,
Soltar.
Momento presente,
Momento maravilhoso.
Thich Nhat Hanh
Ao se iniciar a escrita de um texto sobre o conjunto de obras de um (a) artista, inúmeras passagens se abrem. Para discorrer sobre os trabalhos de iracema barbosa algumas possibilidades de análise surgem e se entrelaçam: o da prática de ateliê, o do ser artista no estado de hic et nunc - ou o estar aqui e agora – e o exercício com o ínfimo como linha de trabalho, que podemos aliar, tomadas as devidas distâncias, aos movimentos da história da arte que tratam do construtivismo, do pós-minimalismo, como também de vertentes da arte gestual.[1]
No ateliê tudo assoma-se porque tudo está em processo. Em um momento tem-se a certeza, no outro ela se esvai com o próximo movimento até que o artista dê um ponto final à história de fazer. Há, entre a construção uma obra e outra, narrativas que estão conectadas às muitas vivências de Iracema ao longo desses 36 anos de trabalho com artes visuais. Cada aprendizado com as situações que surgem vão informando as práticas, e é importante que se diga que, para a artista, as experiências com arte estão integralmente relacionadas ao universo da vivência humana e não pertencentes ao domínio do monumental e da sociedade de massa.
Nessa dimensão estão enredados os aprendizados frutíferos que ela teve com o artista Aluísio Carvão e com o professor de teoria e história da arte Ronaldo Brito, cada um agregando a sua parcela de conhecimento à artista: de nível prático e teórico, respectivamente. Com Carvão, veio o aprendizado com a <rotina do ateliê >[2] e o cultivo da singularidade artística e, com Brito, aprendeu a <pensar o trabalho e a ver o trabalho em diálogo com outros trabalhos, os quais se constituem como linguagem visual>[3]. Cito isso como uma questão porque é algo frequentemente mencionado por Iracema e que tem a ver com o apreço pelos mestres e pelo aprendizado que dessa relação advém. Não é a toa que Iracema convidou artistas que foram seus estudantes no Instituto de Artes da Universidade de Brasília para participarem da exposição. E aí outra questão surge para contribuir com essa dimensão vivencial: o cultivo das relações pessoais como forma de estar no mundo da arte.
Essa percepção sobre o estar com e o fazer arte vinculam-se a um outro extrato de interesse da artista e que está vinculado a forma de viver a vida que a aproxima dos estudos zen-budistas, principalmente com o que ensina o mestre vietnamita Thich Nhat Hanh[4]. Sabemos que o zen dedica muita de sua energia no estar presente, por meio da prática da plena atenção, pois o ato meditativo é nuclear para a prática zen. Meditar significa agir no tempo como se nada mais houvesse a ser feito, a não ser estar.[5]
O aspecto zen da produção de Iracema está localizado não só na forma como a artista vê o mundo, que ela define como muito contemplativa – atribuído ao seu interesse pela natureza, o que, de uma certa forma levou-a a cursar Geografia e estudar a formação da paisagem -. Há, relacionado a isso, a maneira como se desenrola o seu trato com os materiais e com o seu trabalho com cores e com luz e sombra: há uma deferência ao caráter próprio dos materiais, tal como eles se apresentam. Iracema constatou - ao se referir a sua abordagem em relação ao grau de interferência sobre os materiais - que eles continham o seu próprio valor e presença, bastando-se. Algo que observamos nas Caixas Vazias (1998-2000) e nas Séries Infinitas (2000-2001).
Como vimos, além da atenção às propriedades originais dos materiais, há também um observar minucioso sobre a aplicação da cor, que já passou por vários estágios no conjunto de sua produção: da cor, na pintura, associada à retratação de cenas, de meados da década de 1980 a meados da década de 1990 à cor sobre os recortes de madeira, como vemos nas instalações Mar da Bahia em dia de chuva (2006), Bois de Carnaval (2003-2009) e As equilibristas (2005-2006).
Nesses trabalhos – como, na verdade, em todo o conjunto de obras – os títulos são indicativos das ideias que estão relacionadas à forma, como também à condição que a forma assume enquanto obra a ser instalada no espaço, posto que, diferentemente das suas pinturas do início de seu percurso, elas não estão a serviço da representação, mas se apresentam para o mundo sensível, ressurgindo com novas configurações a depender do espaço em que sejam instaladas. É oportuno que se diga que continua aqui a atenção que a artista dedica ao seu entorno e aos incidentes da paisagem: os matizes de cor do mar da Bahia, na obra homônima, que ficaram impressos em sua memória; os gravetos de árvores com diversas tonalidades do Bois de Carnaval, ao redor da casa de Iracema, em Bois de Vincennes, na França; e a alusão que fazem As Equilibristas à instabilidade de um ecossistema que pode ser assolado a qualquer momento por forças da natureza, tal como foi a catástrofe natural ocorrida na França na década de 1990, a qual o trabalho se refere, e que provocou fortíssimos temporais derrubando essas mesmas árvores de tonalidades tão diversas, e tantas outras.
O ciclo produtivo do emprego da cor – que encontrou proximidade com as pinturas de Eduardo Sued[6] e com as esculturas de Ione Saldanha -, deu lugar, nos primeiros anos de 2000, à introdução de uma paleta mais reduzida, como ela mesma relata, explorando as nuances que se estendem do branco ao preto o que, para ela, foi uma maneira de perceber melhor as formas, não somente como elemento de objetividade e, sim, como a <forma da experiência de estar no mundo>[7]. Intimamente associados aos exercícios com as gradações de cinza, está o aprendizado sobre a incidência de sombra e luz na obra, que ocupa um amplo espaço de seu grupo de trabalhos.
Não que a cor tenha sido abandonada, mas ela surge amena, sem grandes alaridos, como vemos em Perfis [As Cariocas], de 2002, que além de uma outra relação com a cor – aqui própria do suporte - aponta para um movimento e um sequenciamento que se assemelha aos quadros de um filme que se encadeiam, configurando uma narrativa, algo com o que Iracema se relaciona há muito tempo, quando teve a oportunidade de pensar a imagem em movimento quando teve contato com a edição cinematográfica. Se o conjunto de esculturas/instalações que citamos acima remetem à memória da vivência da artista na França há, aqui, a referência aos morros do Rio de Janeiro, cidade natal de Iracema.
O sequenciamento de imagens que caracteriza alguns momentos da produção de Iracema que está sendo mostrada nesta exposição não está, como dissemos anteriormente, a serviço da representação de uma determinada realidade externa e nem correspondendo a uma lógica narrativa que a constitua. O que ocorre é a elaboração das formas e o trabalho com a matéria em afinidade com as memórias, às histórias e as experiências de vida. E sabemos que no processo da produção artística há fabulações. Não é figurativo; é figural. O encadeamento de imagens em trabalhos de Iracema, como em Tempêtes (2003-2017), Geometria das Águas (2009) e Refúgio (2017) se assemelharia ao que Gilles Deleuze definiu como <ritmo> ou a potência vital que < (...) transborda todos os domínios e os atravessa.>[8] Refere-se à sensação e a pulsão de fazer e não um subjugo à significação. Essa qualidade de continuidade e movimento ofereceram a possibilidade que esses trabalhos se transformassem em vídeo.
A afinidade com as memórias e o encadeamento rítmico continua em Bilhetinhos de amor (2013), apontando para a relação com vida e seus momentos cotidianos que fazem reviver a cor: surge rosa, vibrante e afetuosa, interligada a escritos: <Daqui a pouco o fim de semana. Je´t aime> ou <Um abraço tão gostoso de manhã. Te amo tanto>. O tom afetuoso permanece na série Para não dizer que não falei de flores, (2019) realizado durante a pandemia do Covid19. Porém, neste caso, o momento pediu por um alargamento dos afetos, que transbordou para o campo geopolítico, indicado pelo título – aludindo ao título da música homônima de Geraldo Vandré, que se tornou emblema de combate à ditadura – e que é reforçado pelos complementos das obras: cartas datilografadas que as acompanham, ora com um poema de Jorge Luis Borges, Adam Cast Forth, de 1964: uma triste constatação sobre o jardim do Éden como ilusão envisionada, ora com um trecho do poema de Octavio Paz, Entre la piedra y la flor, de 1976; uma ode ao trabalho que se estraga frente o poder do dinheiro: <Saber contar no es saber cantar>.
Os afetos se dão também no terreno da tatibilidade. Há um caráter sinestésico na produção visual de Iracema: um cruzamento de sensações que atravessam a visualidade para chegarem a outros sentidos. Isso comparece nas diversas materialidades em torno da qual ela desenvolve o seu processo de trabalho, mas também nos modos de fazer, como no ato de costurar que toma os espaços do tecido ou do papel e que se desenvolve de várias formas como podemos perceber na série Costurando Sombras (2016). A linha entra desenhando caminhos retos e tortuosos, às vezes em círculos, em breves pontos ou quase sumindo, disfarçado em meio às manchas, como em A incrível viagem de Shackleton (2016-2017) ou dialogando em uníssono com o papel cor da pele e nas dobraduras, como nas Cartas (2019-2021).
A delicadeza da costura também acontece na trama das relações pessoais. Uma das questões basilares para Iracema, como mencionamos, é o trabalho que se passa no ateliê. Há uma parcela nele que acontece de forma solitária: é o (a) artista e o seu processo. Entretanto, há outros momentos em que um intercâmbio acontece, e outros artistas entram em contato com a artista e com a sua produção e ali são tecidas as afeições. Nesta mostra, Iracema convidou estudantes seus, hoje artistas, com quem conviveu também no ateliê e em montagem de exposições, para dialogar com o seu conjunto de trabalhos. Esses artistas colaboram para que as texturas aconteçam ricas, variegadas, riscadas, grafiatadas, chapiscadas, marmoreadas, apresentando recortes de suas pesquisas. Bárbara Paz, Cecília Lima, Gisele Lima, Gustavo Silvamaral, José de Deus, Luciana Ferreira e Romulo Barros escolheram uma obra com que tivessem afinidade e propuseram obras tanto em contraponto, como em associação.
Bárbara Paz dialoga com as séries de trabalhos que envolvem a costura, mas também com o trabalho Para não dizer que não falei de flores (2019), e apresenta Territórios, da Série Pequenas Peles (2018-2019). Lembrando recortes de países ou Estados, cortados irregularmente, Bárbara se aproxima da memória familiar fazendo uso de costuras e de tecidos existentes em casa, e neles inscreve, com a máquina datilográfica, conversas, sonhos e revelações. Cecília Lima também propõe uma conversa com a costura, mas por outro viés: o da sombra e luz, referindo-se ao trabalho Costurando Sombras (2016). Com papel de arroz e estruturas de madeira e palhinha, pré-existentes – algumas delas presenteadas por Iracema – Cecília apresenta uma instalação cujo jogo com a luz tornam as obras, enquanto materialidade, expandidas, pela sobreposição de sombras. O diálogo com outras obras foi proposto pela artista, agora dirigido a obras de Iracema que se relacionam com a escultura, como Caixas Vazias (1998-2000) ou Séries Infinitas (2000-2001). São os Vacilantes (2020), também uma instalação. Como as Caixas, Vacilantes – feito com retalhos de madeira de descarte - está submetido a um jogo de peso e contrapeso.
Duas artistas escolheram como obra para delinear uma conversa, a série de Bilhetinhos de Amor (2013): Gisele Lima e Luciana Ferreira. Duas percepções diferentes surgiram: Gisele apresenta seu trabalho em formato de pequenas esculturas, enquanto Luciana desenvolve a poética sobre o papel e o vídeo mas, em ambas, o texto irrompe. Bilhetinhos de desamor (2023) foi o retorno que Gisele deu para essa aproximação com os bilhetinhos de Iracema, adotando de volta a ideia dos rompimentos (<Fui em quem estraguei tudo>, <Quero distância>) – a que os bilhetinhos de amor de Iracema remetem – e que a cerâmica fria acaba por simbolizar, inscrevendo sobre as pequenas peças, frases, mensagens tomadas dos aplicativos, procedentes das relações travadas nas redes sociais. Luciana, além da seleção dos Bilhetinhos de Amor, como obra para conversação, também traça relações com Geometria das águas (2009) e Para não dizer que não falei de flores (2019). Partindo da ideia de desconstruir a linguagem, como a artista relata, a poética dos trabalhos apresentados nesta exposição acontece no vídeo leitura 5 (2021) e no políptico fotográfico pequenos poemas para de vez em quando (ou poeminhas à toa) (2021) onde Luciana age reescrevendo, repetindo, rasurando, amassando. Elaborações feitas em torno de poemas de Gertrude Stein e Augusto de Campos.
Mas não só em forma de poemas e declarações de amor estão os textos nas obras de Iracema: em Telefônicos (2004-2005) vemos a intervenção pintada e costurada sobre textos pré-existentes, como nos endereços das páginas de catálogos telefônicos. Note-se que a intervenção sobre papeis variados são recorrentes na produção de Iracema. Também assistimos isso acontecer em Saquinhos de mercado (2020-2023) onde a artista agrega sacolas com o mesmo padrão, costurando umas as outras. Os dois trabalhos que José de Deus apresenta nesta exposição dialogam com essas duas obras, não em forma de poemas ou baseado em mensagens de aplicativos, mas em forma de reportagem. Em Fruit News (Melancias e Bananas Pt2) (2016) imagens das frutas tropicais são carimbadas sobre páginas de jornal, aludindo a clichês usados para fazer referência ao Brasil. Ao carimbá-las repetidamente por cima de reportagens, envolvendo crimes e catástrofes, o trabalho aponta para duas estratégias vocativas: explicita a mídia que reforça os estereótipos sobre o país e expõe a contradição que a imagem singela e colorida das frutas encontra quando se depara com o Brasil violento. Já a peça Jesus Neon (2017), é a capa de um zine, impresso em rosa vibrante, que elabora uma crítica em torno da ortodoxia religiosa, confrontando os seus dogmas com o que está posto na sociedade de fato: a questão LGBTQIA+ e o racismo.
A sucessão de acontecimentos por meio da matéria e da forma que observamos em obras de Iracema, é algo que Romulo Barros também introduz em seus trabalhos, de diferentes maneiras. Nas duas obras que dispõe para o diálogo, Modular (2018) e Pau-Brasil joia (2019) o encadeamento ocorre como desenvolvimento que leva à transformação. Modular, dispondo-se para conversação com a obra Séries Infinitas (2000-2001), é composto por partes variáveis, que se adapta ao espaço em que é instalada: < forma não estática e enrijecida >, como relata Romulo. Pau-Brasil joia, um encadeamento de pinturas avermelhadas se vincula as costuras e sobreposições, remetendo-se, como o nome indica a um Brasil antigo, adornado e colonizador. As modulações prosseguem como lugar para a troca. Mar da Bahia em dias de chuva (2006) foi o trabalho de escolha de Gustavo Silvamaral por seu vínculo estreito com Sequências (2016), uma pintura não pintura, montada como blocos de cor que, reunidas, insinuam uma determinada paisagem ou um <corpo pictórico>, de acordo com o artista, cujos vínculos com Iracema vão além da afinidade poética, estabelecidos também pela assistência na prática do ateliê e em montagens.
Assim, são pautados os trabalhos de Iracema Barbosa: misturando arte e afetos, como massa mesma da vida. Seja no caminho em que se traçam relações com alinhavos, costuras e transparências, ou em termos de corpo-cor, a artista nos apresenta um conjunto de trabalhos, tramados como um continuum que se desenrola em formato de espiral: uma curva aberta que gira em torno de um centro, como um caracol. São processos de feitura em pequenos gestos que se dirigem ao infinito. É organicidade no construtivo e construção na organicidade.
[1] Todas essas questões foram levadas em consideração para se adotar o partido curatorial desejado para essa exposição, após várias etapas de conversação com a artista e de observação de seu conjunto de obras. As obras mencionadas neste texto são os trabalhos que foram selecionados para figurar na mostra.
[2] Depoimento concedido à autora em 26 de abril de 2023.
[3] Ibid.
[4] Thich Nhat Hanh (1926 – 2022) foi um monge budista vietnamita que fundou o Movimento Budista Engajado, revelando a sua dedicação a um trabalho não circunscrito somente ao plano individual, mas também ao coletivo. Foi ativista da paz tendo sido contemplado com o Prêmio Nobel da Paz.
[5] Essa é uma das tantas questões abordadas por Thich Nhat Hanh em seu livro Nada a fazer, não ir a lugar nenhum, publicado pela Editora Vozes, em 2007, com o qual Iracema me presenteou em um de meus aniversários.
[6] Iracema escreveu sua dissertação de mestrado sobre o trabalho de Eduardo Sued cujo título é Inquieta Geometria. Rio de Janeiro: PUC, 2001.
[7] Depoimento concedido à autora em 26.04.2023.
[8] DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro., Jorge Zahar, p.49-50.
Detalhe de Geometria das Águas, 2009. Vídeo 5`21`` Fotogramas a partir de desenhos em nanquim sobre papel coreano.