Incisões: o solo feito imagem

 

(texto para catálogo virtual)

O ponto de partida: antes do olhar para o chão

Uma vida quase se passa sem que a nossa ascendência cintile em nós. Contudo, em algum momento na nossa existência a luz se acende, como se houvesse uma busca a ser feita, adormecida desde anos, que sequer sabíamos estar lá. Quando vejo os trabalhos da Helena Lopes para a série Do chão para o chão, transparece a procura: foi um processo de trabalho envolvendo a investigação do outro – o atávico familiar ‒ que acaba sendo uma busca do eu e do estar no mundo.

No caso de Helena, o ponto de partida para o desenrolar de sua viagem de busca dos antepassados é Budzyn, na Polônia, um município agrícola que, como a etimologia da palavra indica, é a menor parte da aldeia. Deste pequeno local, de 4.475 mil habitantes, irradia-se a história que se refaz, com a produção das obras de arte que surgem, a partir das reminiscências de memória da artista, acerca do que seja não somente a vida dos seus ascendentes, como também a de outros refugiados e de prisioneiros do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, o qual ela visitou com as irmãs em 2019. A busca também se tornou uma indagação sobre o futuro da humanidade, e ainda sobre como lidar com o presente, que carrega a memória.

A mãe de Helena é o ponto de partida desta narrativa. Ela nasceu em Budzyn no dia do armistício, em 11 de novembro de 1918, migrando para o Brasil quando tinha 4 anos de idade. Uma história que encontra eco em tantas outras histórias. É um fato sociopolítico mundial. Pertence à cultura global compartilhada. O psicanalista Christian Dunker[1], ao relatar a sua própria história familiar, também não escapa do feito ao se referir a uma situação mais ampla, que é a da guerra e dos seus efeitos, quando termina:

 Finda a guerra, uniformes são depostos. Não se discerne mais amigos e inimigos. Começa o tempo de pânico no qual vigora outro tipo de busca por refúgio. (...) Aparece a errância, o sentimento de que é preciso sair de onde se está, mas sem que se saiba muito bem para onde ir. Nessa hora, nos agarramos a uma espécie de ideia fixa, um ponto de retorno que nos diga, ainda que imaginariamente, onde fica a nossa casa.

O sentimento de estar perdido continua, como também o desejo de encontro. Um anseio que atravessa gerações.

 A experiência de talvez estar (“uma intrusa fora do tempo”)

 A composição da história que Helena elabora se expande para a escrita e a produção artística daí transborda; as duas linguagens se inter-relacionando e conferindo à narrativa uma parte de veracidade, oriunda do vivido, e uma dose de ficção. Estas elaborações se tornaram um livro e deram origem a uma exposição, ambas nomeadas Do chão para o chão.

No livro, Helena idealiza e mistura os tempos: uma hora ela está no passado, com a sua mãe, imaginando como seria estar lá, compartilhar a angústia de estar em meio à obscuridade, em meio à perda, em trânsito para o desconhecido. Em outros momentos, ela se volta para o presente e, com a distância, pode questionar sobre qual é o lugar do afeto no interior do caos e, como ela diz, “(...) do vazio do não pertencimento.”[2]

A sensação de ‘não ser parte de’ se intensifica quando Helena agrega à sua memória pessoal o avistamento do estado de outras vítimas de guerra. Ao visitar o campo de extermínio, a busca do afeto se consolida, como se pudesse ser cortada à faca, tão densa se tornou a experiência. A floresta de bétulas (birkenau), no meio da qual, aberta uma clareira, o campo é construído, e que poderia ser a face aprazível desta narrativa, se transforma em sombra do poético, o que foi tão bem colocado pelo filósofo e historiador Georges Didi-Huberman,[3] quando percebe que as imagens das texturas das cascas das bétulas, as quais ele olha e fotografa, são similares às de tantos outros turistas que lá foram, tornando a sua prática de captação de imagem uma experiência comunal, parte da cultura compartilhada sobre a qual nos referimos antes.

Helena comunga com Didi-Huberman do vínculo com a coisa – as cascas das bétulas – como aquilo que, talvez, possa tomar o lugar das vidas que se foram, ou mesmo reconhecer o que há de inominável em todo o contexto, uma vez que a coisa se torna testemunha dos acontecimentos. Helena também avista o bosque de bétulas e, depois dele, uma vastidão de terra seca e inóspita que poderia, talvez, apontar a uma saída, não fosse ela impraticável.

 O chão e a captação do oculto

 E aí entra a imagem como lugar para transformar o inerte da coisa em materialidade no tempo, mesmo enquanto imagem. Nise da Silveira[4], ao refletir sobre o modo de ver as coisas, pondera sobre os seus possíveis enveredamentos: a mirada para o mundo exterior como cópia ou a anuência de que há uma realidade interna, ampla, objeto próprio para a linguagem visual, sem “(...) intenção de refletir o visível, mas de tornar o invisível visível.”[5]

A dificuldade de conexão com o entorno, ao visitar o campo, leva Helena a olhar para o chão e em direção às fendas, às fissuras, às rachaduras. De repente, há o vislumbre de uma geografia particular dentro do macro universo de pânico. Surgem texturas e a possibilidade de aproximação. E a expectativa de arte no horizonte. A Helena Lopes gravadora permanece no que surge do chão fotografado por ela: estão presentes as incisões, os encavos, os sulcos. As marcas continuam, contemporâneas ao seu pensar e burilar no seu tempo de busca dos “(...) segredos do chão.”[6]

 É relevante destacar que o visionamento do chão está relacionado à investida corporal da artista que se move entre os espaços, instaurando a sua presença por meio da caminhada e de cliques incessantes. Na junção da biografia ao ambiente forma-se, de acordo com o historiador de arte Hans Belting, um corpo coletivo, que conjuga “(...) particularidades de ordem pessoal com outras de índole coletiva.” Ele prossegue: “(...) Esta dupla marca exprime-se na aceitação e aquiescência mutável com que enfrentamos as imagens do mundo exterior.”[7] Helena as aceita, mas as subverte, fazendo-as colidir contra as repressões, violências e pesadelos a que o outro esteve submetido, inventando um novo lugar para as imagens, um lugar na memória e não lugar de memória, como diz Belting, citando Pierre Nora. Ele escreve : “(...) os lugares não desaparecem nem se diluem sem rastro, deixam vestígios num palimpsesto de múltiplos estratos, no qual se aninharam e sedimentaram antigas e novas representações.”[8]

O processo, a fotografia, a mutação

 A fotografia digital, como algo não absoluto e único, reproduz-se e vai, como os lugares, deixando vestígios, camada a camada, das intervenções a que é submetida. Entretanto, é matéria para o pensamento refletir até que ponto a aura do lugar visitado e a mirada da artista tornam originais o que poderia ser uma cópia, posto que a fotografia se instaura como linguagem de base para captar o meio vivido nesse projeto de Helena.

Em Personagem, uma das imagens emblemáticas desta série, temos um exemplo de como as camadas operam entre as várias instâncias dos procedimentos digitais, colocando-nos frente  à questão tanto do único e múltiplo, como também das correlações entre figuração e abstração, além do animado e inanimado.  Afinal, o Personagem – uma marca texturizada e colorida no chão – é alçado, pela artista, não só ao papel de uma representação visual, mas como presença viva; torna-se seu companheiro de viagem e seu guia: “O Personagem me chama, me direciona, sinaliza o caminho por entre os pés dos visitantes. Não penso em nada, com o corpo inclinado, olhando para o chão, sigo.”[9]

A vida que Helena confere ao Personagem faz parte desse processo de pensar o digital como forma de ressignificar a experiência vivida: a 1ª imagem, captada no momento da visita, permanece como obra, mas ela a refaz, como uma segunda versão dela, dando-lhe outras tonalidades, incorporando novos elementos, com o propósito de equilibrá-la e protegê-la: adiciona em uma de suas ‘pernas’ uma meia, como a que costuma usar, transformada em mancha gráfica.

As imagens de Helena seguem, em seu percurso de viagem, ganhando vida e nomenclaturas: a máscara, o alimento, a grade, o Virgílio, o Equilibrista, o pai, a nave, o bulbo. Poderíamos trazer à tona, dada a desorientação da artista, relatada por ela no livro, o tema do estranho, de Sigmund Freud[10], visto que o movimento de Helena, em muitas das fotos, dá vida ao inanimado pelo desconforto que o não familiar da situação apresenta, como um contraponto pelo quê de familiar carregamos como conhecimento desta história. A artista enfrenta o incômodo de tal circunstância encontrando figuras nas fissuras do chão, tornando o ambiente mais palatável e menos assustador. A narrativa daí nasce e se desenvolve.

No processo de desenvolvimento da série, a experimentação com as mídias digitais se punha não puramente como ação de ordem técnica que resolvesse uma exigência da imagem, mas como vontade de solucionar conceitos que satisfizessem o desejo da artista de chegar onde pretendia. Alguns recursos são largamente utilizados por Helena: o espelhamento das figuras, a extração, o deslocamento e o redimensionamento de formas. Essas práticas reconfiguram aquela realidade determinada, criando novas paisagens. São, como escreveu Cândida Almeida, poéticas de recomposição, que acontecem quando o artista deseja “(...) recompor uma dada disposição sígnica da obra.”[11] Com isso, a poética se amplia, dá margem ao inusitado e confere espaço à projeção de novos significados.

 Daquela busca inicial da ascendência, que cintilou sua presença para Helena e impeliu todo o movimento que a fez chegar a esse lugar de produção artística, algo se transformou, e as mutações de imagem apontam para isso. Nos espelhamentos, por exemplo, a memória do visto encontra outras vias para vir a ser. Para alguns, como para o narrador de um conto de Guimarães Rosa[12], o espelho, em seu viés metafísico, carrega enigmas, cujos significados precisos nos escapam; para outros, espelhar torna algo manifesto, uma identificação.

Assim, o chão originário – oriundo da vivência coletiva derivada de uma ação política nefasta ‒ sofre mutações que a prática artística proporciona. É uma reescrita sobre a imagem que desemboca em outra história. Presente e viva.

  

                                                                                                                      Renata Azambuja


[1] DUNKER, C. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, 2017. pp. 7-8.

[2] LOPES, H. Do chão para o chão. São Paulo: Giostri, 2023. p. 28.

[3] DIDI-HUBERMAN, G. Cascas. São Paulo: Ed. 34, 2017.

[4] SILVEIRA, N. O mundo das imagens. São Paulo: Ed. Ática, 1992.

[5] Ibid, p. 82. Silveira refere-se a Paul Klee.

[6] LOPES, H. Op. cit. p. 39.

[7] BELTING, H. Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. Lisboa: KKYM + EAUM, 2014. p. 81.

[8] Ibid, p.85.

[9] LOPES, H. Op. cit. p.47.

[10] FREUD, S. O infamiliar. São Paulo: Autêntica, 2019. “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” p. 64.

[11] ALMEIDA, C. Poéticas da recomposição: arte, rede e cognição. In: Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir. Orgs. Lucia Santaella, Priscila Arantes. São Paulo: Educ, 2008. p. 202.

[12] ROSA, G.  Primeiras histórias. São Paulo: Global, 2019. Recurso digital.