luiz olivieri
(texto para catálogo)
Extraclasse, ou como sobreviver aos “tempos surdos”[1]
Que sons queremos preservar, encorajar, multiplicar? (...)
Clariaudiência, e não ouvidos amortecidos.
R. Murray Schafer, 1998.
Primeira notação
Situações geradoras
Em 2016, Luiz Olivieri inicia o processo de fabulação para o que viria ser esta exposição. Mais do que ser uma exibição de obras, o que vemos é um conjunto de ideias e procedimentos complexos, maturados durante a elaboração de sua tese de doutorado, concluída em 2021.[2]
Dentre as ações que compõem o projeto, estiveram os exercícios artístico pedagógicos, ativados durante o tempo em que foi professor da rede pública de ensino do Distrito Federal. Como professor-artista, Olivieri envisionou a escola como espaço possível para exercitar outras maneiras de se estar como professor, que não fixado à sala de aula como “o” lugar por excelência da prática docente, e nem preso aos protocolos que relacionam ensino à aprendizagem obrigatória de conteúdos pré-fixados para se atingir metas universais, que tendem a silenciar a plurivocalidade.
Ao assumir o lugar de professor de arte, Olivieri transporta para o ambiente escolar a questão que é central em sua poética artística desde 2008: a sonoridade que, naquele contexto, foi acionada como parte de uma pedagogia da escuta em busca de ressonâncias sonoras, instaurada para dar vazão à percepção auditiva de diferentes frequências, ruídos e silêncios. Para escutar essas diversas sonoridades, o artista Olivieri adotou, ora a posição de professor estrangeiro, ora a de professor-espião.
Diversos pontos de escuta se estabeleceram nas escolas com as quais Olivieri se pôs em contato, derivando nas peças que vemos nesta mostra. As vivências docentes, muitas vezes embrutecidas pelas ocorrências do cotidiano escolar, se transformaram em objetos de arte, pela insistência do artista em tornar hedonistas as suas escutas do mundo, a que ele deu o nome de ‘sondiagem', ou uma estratégia para superar o ensurdecimento provocado por uma sociedade que aprisiona a escuta e nos impede de vivenciar experiências libertadoras.
Segunda notação
Objetos trans sonoros/ arte experimental em questão
É difícil afirmar, para efeitos da Exposição Extraclasse, quem nasceu primeiro: o som, o objeto ou a pedagogia. E, talvez, seja essa indeterminação o fio condutor para se transcorrer sobre esse projeto. Admitir que diferentes frequências coabitam na paisagem sonora que constitui o espaço construtivo onde a investigação e a poética de Olivieri acontece, é o mesmo que se dar conta de que o som não é de lugar nenhum, mas é também de todos os lugares. Pode-se dizer, tendo isso em mente, que a sonoridade é uma condição presente na vida, e que as paisagens sonoras integram a existência, mesmo que elas, comumente, nos passem desapercebidas, submersas sob o estridente e pervasivo domínio dos campos visuais.
Quando Olivieri, enquanto professor de arte, passa a inter-relacionar suas práticas, como artista, ao seu exercício como professor, a sua percepção sobre o lugar aonde a educação ocorre se amplia (lugar que engloba docentes, discentes, equipes de servidores, espaço físico da escola e seus recursos materiais). A escola passa a ser lugar para escutas singulares, que se tornam pedagogias, tendo a arte como o meio para tornar o invisível visível. Não é a toa que a série Extraclasse (2019-2020) [p.XX], dá nome à exposição, indicando um caminho pedagógico em que o som vira representação sonora - imagem significante - que transborda os confins da sala de aula, atravessa os muros da escola e ganha os entornos de vivência pessoal de cada estudante. Os estudantes agem como arqueólogos de sonoridades, captando sons através da escuta e coletando-os mentalmente os que lhes parece ser recorrente e, a seguir, levando os sons de volta à sala de aula para compartilhamento e tradução. Como é o som do vento que leva todo o tipo de coisa?
Refletir sobre a invisibilidade do som soa como tarefa fútil e descabida, posto que parece ser óbvio, se pensarmos que o som, quando emitido, é elemento imaterial e imperceptível aos olhos. O fato é que, mesmo em sua imaterialidade, o som existe. Um dos desafios é conjecturar em como ele se propaga e que efeitos ele causa o que, no caso do conjunto de obras de Olivieri para este projeto expositivo, é um exercício a que somos impelidos, porque nos leva ao campo efetivo de experimentação em arte.
O dado experimental é fundamental para interagirmos com o universo sonoro de Olivieri. Tanto porque o nicho da Arte Sonora[3] (como movimento em arte) - em torno do qual o artista transita - eclode, historicamente, na década de 1970, que é o momento por excelência da experimentação em arte. Isso não significa desconsiderar momentos anteriores em que o som foi ativado como parte da obra de arte, como aconteceu com obras de artistas dadaístas e futuristas na década de 1920 (podemos citar as experiências de justaposição de sons realizados pelo futurista Filipo Tommaso Marinetti) e em incursões notáveis de alguns artistas nas décadas de 1950 e 1960, como foi o caso de John Cage, Nam June Paik, Ben Patterson, Yoko Ono, por exemplo, mas significa dizer que foi quando um conjunto de experiências em torno do som começa a ser plasmado, ou passa a tomar forma na consciência, como um fato de porte mais amplo e generalizado, dando nome a um campo de trabalho para as artes visuais. Naquela fase, práticas e produções artísticas interagem menos com vistas ao estudo das propriedades estéticas e materiais do objeto como o ápice da análise, procurando se relacionar mais com “os momentos e a construção das situações “[4].
A atenção ao transitório, ao lugar e às questões que surgem junto a esse olhar para a temporalidade e para o entorno, passam a ser nucleares para a elaboração de outros pensamentos em arte e de sua produção, surgindo como respostas de desagrado a um sistema de crenças e bases sociais, culturais e econômicas consolidadas, há tempos insatisfatório para dar conta de um presente crítico, que acordava, transglobalmente, na década de 1970, para o feminismo, para a ecologia, para a tecnologia e suas implicações para a existência cotidiana, para os institucionalismos, entre tantos outros temas que surgiam para compor um outro cenário. Um cenário que, para ser e estar como alteridade no presente, teria que estar atento a não reproduzir mecanismos institucionais que objetivassem posições radicalmente estáveis, e, nem tampouco, incentivar a ideia de imutabilidade do sujeito. Uma solução seria a de buscar constituir algo mais próximo à “fundações contingentes”[5], ou formações não absolutistas e compatíveis com a crescente instabilidade do mundo e com as incertezas subjetivas.
Terceira notação
As paisagens sonoras existem; estão misturadas ao tecido do mundo. Escutá-las é ato de ressignificação do estar.
À ideia de ´contingência` seria importante adicionarmos uma outra: a de hibridismo, como uma condição de transformação decorrente das mixagens que ocorrem quando há interseção de campos e de narrativas, para que, a partir daí, comecemos a trançar elementos para a constituição do terreno de formação da arte sonora e, dessa forma, nos aproximarmos das obras que compõem o conjunto da mostra Extraclasse (Lousa, Cacofonias, Topofonias, Eletrocardiograma, a série Extraclasse e Ponto de Escuta). Este conjunto, ao ser apreciado, nos conduz a um território aonde o som não parece ser privilégio de um campo de saber ou de outro, e assume materialidades singulares a depender do enfoque, determinado pelo interesse do artista ou do pesquisador.
Olivieri enfatiza as possibilidades de coabitação de campos, ao idealizar e construir engenhocas que produzem sons e textualidades, combinadas a materialidades e recursos – carteiras, cadeiras, lousa, gráficos - itens que são naturalizados como de propriedade exclusiva do ambiente escolar. Isso porque falar em arte sonora como parte de um conjunto de manifestações em arte contemporânea, significa incorporar a elas misturas e cruzamentos, tais como presenciamos na constituição da música concreta[6], aonde a prática de colagens de sons acústicos e eletrônicos gravados previamente e/ou manipulados,
configuram as suas estruturas.
Enquanto a música concreta[7] enfoca os estudos das propriedades sonoras dos objetos, suas propriedades físicas e as tecnologias envolvidas no processo (assemelhando-se aos estudos estéticos e formais sobre uma obra de arte); as paisagens sonoras surgem como um campo de pesquisa ampliado, em 1970, referindo-se ao espaço como lugar que comporta as relações entre as coisas e as pessoas (ouvintes). O canadense Murray Schafer, que impulsiona os estudos sobre o assunto, define a paisagem sonora como “campo de estudo acústico”, que está em busca de uma ecologia sonora capaz de revelar as relações entre seres vivos e seu meio de existência. Essa ideia, de certa forma, se aproxima da idealização de um projeto site-specific em arte, aonde o ambiente se transforma em locação para dar vazão a uma ideia ou a uma situação.
Olivieri relaciona, em sua tese, a escola à paisagem sonora e à residência artística, e propõe uma espécie de metodologia para o estar nessa outra escola, norteada pela arte e pelos sons, a que ele dá o nome de ´sondiagem`, uma investigação sobre o espaço e sobre a condição de si fundamentada em uma escuta hedonista, motivada e dedicada ao prazer. A concepção do espaço educativo como residência de arte nos conduz a pensar sobre os sentidos do aprendizado, seus conteúdos e métodos. O termo residência encontra equivalência em “terra” e em “lugar de origem”, conduzindo-nos a outro aspecto da conjuntura apresentada pelo artista, que é a do se estar conectado ao espaço pedagógico como espaço de pertencimento e identidade.
Mesmo que cada um dos objetos e instalações que Olivieri idealiza sejam singulares em suas condições de produção e em suas materialidades, como também individuais em suas expectativas de resultados e em sua recepção, quando elas são reunidas em um mesmo espaço, dentro de um projeto, conjugam-se e se transformam para configurar um ambiente perceptivo, onde as obras falam, conversando; neste caso para dar vazão a um desejo de expor as vivências de um artista enquanto professor na rede pública de ensino brasileira.
A obra Eletrocardiograma (2021) [p.xx] expõe, em forma de gráficos, atividades rítmicas, universais e particulares; absolutas e relativas, da realidade educacional brasileira, colocando, lado a lado, índices que retratam o resultado das pesquisas estatísticas feitas sobre a educação básica no Brasil (a série histórica produzida pelo INEP de 1988-2020), e as observações de Olivieri acerca do seu cotidiano escolar, e as suas reações a ele. Áudios são disponibilizados ao espectador, acompanhando o andamento das barras que atravessam os gráficos através do tempo, sonificando uma experiência que seria puramente visual, se fosse lida, exclusivamente. O universal e o absoluto (macro dados) indicam um contexto maior que analisa matrículas, reprovações e abandonos, enquanto o particular e o relativo (micro dados) apontam para marcadores subjetivos que habitaram a prática e a vivência de Olivieri, em seu dia a dia nas escolas, tornando-se balizadores de questões sobre a merenda, sobre os efeitos negativos causados pelas atuais condições oferecidas aos docentes pelo sistema educacional, e também indicações dos níveis de emoção durante o contato com seus estudantes, em sala de aula.
Quarta notação
Quando a matéria vira som. Quando o som vira palavra
A exposição Extraclasse é, de várias formas, a sonificação de ocorrências do cotidiano escolar, ou melhor, é a percepção de alguém que “vê sons” na matéria, em lugares em que a pluralidade sonora é abafada por padrões habituais do ouvir. Como Olivieri mesmo declara: “ (...) imaginava como meus alunos poderiam usar a escuta para explorar e criar lugares. Eu gostaria que eles ouvissem mais do que ouviam, que entendessem mais sobre territórios e campos sonoros.”[8] Ativa-se o objeto para que ele encontre um outro lugar, para que saia da sua condição de imutabilidade, para que transcenda a dimensão do entendimento comum a que está conectado em razão do seu propósito funcional, como é o caso do tampo de carteira escolar, base material das instalações Cacofonias (2019-2021) [p.xx] e Topofonia (2021) [p.xx].
A reviravolta sobre a vida dos objetos que Olivieri provoca faz parte de um processo construtivo próprio da arte contemporânea, aonde se rearranjam as materialidades disponíveis no mundo, ações epitomizadas pelo readymade ou o “objeto encontrado”, de Marcel Duchamp. Na época em que Duchamp realiza o seu primeiro readymade, em 1913, ele também faz incursões no universo sonoro, idealizando algumas peças musicais e aparatos com som; algumas chamadas por ele de “esculturas musicais” e outras alinhadas ao mundo dos readymades, como o pequeno “cofrinho” ou “enlatado”, que se materializa em 1916, com o titulo de À Bruit Secret ou Barulho Secreto[9], que contem um objeto que produz um som que o artista pretende que não se saiba qual é, e cuja impossibilidade de reconhecimento é reforçada por estar encerrada dentro de um rolo de barbante que é posicionado entre duas placas de cobre, parafusadas uma a outra e onde, no topo de cada uma, há letras pintadas, formando palavras incompletas, cujo significado não se sabe. Uma obra criptográfica que tem o som como parte do enigma.
Se situarmos os objetos sonoros de Olivieri dentro da ótica da tradição dos readymades, poderíamos circunscrevê-los na categoria de objetos encontrados e retificados, ou aqueles que sofrem a intervenção do artista produzindo, na junção de narrativas de ordens distintas, novas relações semânticas. Esta outra ordem semântica dos objetos de Olivieri acontece, oportunizada pelo seu aspecto “low tech” que, em contraponto ao “high tech”, que está associado à tecnologia digital, não é o veículo: o trabalho, é ele mesmo, o que comporta o processo, a técnica, o método. Ela permite ao artista maior autonomia sobre o processo produtivo pois, diversamente dos aparatos digitais, que já estão com seu propósito funcional pré determinado, a tecnologia ali envolvida está a serviço da experiência artística resultando, em outro tipo de recepção, mais próxima ao espectador, tornando o conjunto de experiências com o objeto algo único e irreprodutível.
Dentre os 6 trabalhos presentes na exposição, Topofonia (2021) [p.xx] é a que mais enfatiza o som em sua manifestação conceitual e críptica, porque mesmo que a sua Gestalt configure a imagem de uma sala de aula, o seu tipo de sonoridade, desvinculado da significância de uma textualidade que lhe dê um formato determinado, embaralha os sentidos da escuta, porque não está diretamente vinculado a uma escrita que lhe dê concretude. A instalação consiste em um conjunto de tampos de carteira, vazados ao centro para dar espaço a alto-falantes, pendurados em diferentes alturas e dispostos linearmente, seguindo a forma de organização usual das salas de aula. A instalação está emparelhada por trilhos que projetam uma linha que emite um som de sonar que vai ficar mais agudo ou grave, a depender da altura dos tampos. Os sentidos de identidade, coletividade e diferença estão ali dispostos, como ideia e metáfora. O ruído é a voz. Cada tampo poderia ser alguém, cada sonido uma voz.
Há uma espécie de transformação mágica da matéria que correlaciona o par visível/invisível na medida em que o som se apresenta por meio da concretização de um objeto que o corporifica. No processo de trabalho do artista a escuta da paisagem sonora faz surgir frequências sonoras que são inaudíveis a ouvidos não atentos, a não ser que se proponha tornar o exercício de escuta consciente. O processo de “grafar-gravar”, expressão que Olivieri usa para dar nome a sua compreensão de que a escrita pode ser uma maneira de gravação, dá forma à instalação Cacofonias (2019-2021) [p.xx] que, como a série Extraclasse, faz parte de um processo de ensino e aprendizagem proposto pelo professor-artista, desenvolvido no tempo-espaço educativo. Para esse trabalho, propôs-se uma escuta ampliada, cujo território foi a escola.
Quinta notação
Fissuras geram pedagogias sonoras
As obras Lousa (2021) [p.xx]e Cacofonia: disco (2021) [p.xx]formam um par relacionado ao conjunto de atos estratégicos de escuta na escola e que compõem um projeto chamado Cacofonias escolares (2019-2021). Esses trabalhos assumem aspectos diferentes, relacionando-se com a sinestesia que Olivieri percebe como sendo uma qualidade da atmosfera escolar. A partir das combinações de sensações que estão disponíveis nessa paisagem sonora, o artista elabora seu percurso didático. Não há ´uma escola`, não há fala única ou em uníssono, mesmo que haja todo um sistema voltado para estabelecer e instaurar a universalidade como norma.
Há uma declaração de Olivieri a respeito de suas motivações para realizar esses trabalhos que deve ser destacada por sua conexão com fundamentos da realidade escolar, que é a sua constatação da onipresença do par antitético “esforço-frustração” conjugada a várias das ações pedagógicas que ocorrem no cotidiano escolar. Na conjuntura da educação brasileira, o esforço se traduz como eterna tentativa de acerto e, com muita frequência, conduz ao fracasso, à falha, à falta. Na busca frustrada da totalidade, na instrumentalização excessiva das aulas, que cala boa parte de pensamento divergente, perde-se de vista a singularidade da inventividade humana que, se fosse levada em consideração, desembocaria em outro tipo de coletividade educativa.
Olivieri se põe como auscultador na escola, e passa a considerar as fissuras como presenças assíduas e lugares geradores de conhecimento. Entre essas fissuras está o impedimento de ver, invisibilizado pelo excesso de escritas inapagáveis no tampo da lousa escolar, que vão se sobrepondo e formando manchas sobre a superfície, como ocorria nos palimpsestos - pergaminhos escritos, lavados e raspados, para dar lugar a um novo texto. Como todo o erro pode conduzir a um novo êxito, Olivieri, no papel de artista professor, ao perceber o quão frustrante era a tentativa de tornar o texto visível naquelas condições, reconduz a sua prática, abraçando a falha, traduzida pela tentativa desesperada – e impossível - de tornar legível um conteúdo que acaba por se tornar, como Olivieri destaca em sua tese, “palavras vazias (Jacques Lacan)” ou “palavras ocas (Paulo Freire)”.
A essa categoria de palavras, Olivieri acrescenta mais uma, que caracteriza a sua tomada de consciência dessa efusão caótica de sons, que são as “palavras cacofônicas”, expressão usada para apresentar um tipo de comunicabilidade muito diferente da ordenação sonora que se supõe estar presente no contexto educativo que, em alguns momentos pode estar conduzida pela passividade da fala, pelo silenciamento compulsório e em falas de autoridade. Há outras falas que circulam, não previstas, incontroláveis e inaudíveis, porque estão em outros registros e que o artista captura: sobre os hábitos cotidianos, sobre os desejos, as opiniões, as indagações. Olivieri, como professor ouvinte, se propõe a escutá-las e as transforma em textos narrativos (Cacofonias I, II, III, IV, V, VI e VII).
Na obra Lousa [p.xx], Olivieri grava, sobre uma extensa superfície de cor esverdeada, as falas sobrepostas(Cacofonia I) que foram escutadas em múltiplas ocasiões durante a sua estadia na escola e que são emitidas por diversos agentes. Como na lousa escolar que lhe dá origem, o espectador se frustra ao tentar ler o que está gravado, porque somente algumas palavras, se mostram à leitura. Grande parte das palavras se confundem no burburinho da massa gráfica, tornando-se ilegíveis pela sobreposição. Os trechos de texto que se dão a ler, ressoam na memória coletiva como algo já experimentado, presumindo-se que pode haver algo naquilo que está obscurecido pela sobreposição sobre o qual já se conhece, o que pode vir a tornar-se novamente uma incógnita, se encararmos a mancha gráfica que obscurece o sentido do texto e sua legibilidade sobre a Lousa como pintura, uma ilusão de ótica engendrada pela distância.
As cacofonias geram ambiguidades e o sistema escolar, ao estruturar suas materialidades com vistas ao seu correto funcionamento, tenta evitá-las de todo modo, ordenando os espaços e tornando-os uniformes. Contudo, da mesma maneira que o ser humano é falível e finito, também o é a matéria, que estraga e sofre interferência humana: as carteiras escolares são desenhadas, riscadas, lascadas. Sobre os tampos das carteiras ficam gravadas as memórias das fissuras. Quando Olivieri retoma a carteira como objeto de arte, o faz incorporando essa memória de uso, que estão nos rabiscos e marcas que inferem nomes, frases, esboços, como também a reminiscência de passagem daqueles que pensaram sobre, conversaram sobre, estiverem em.
Dessa forma, re semantizando a matéria, as fissuras viram sulcos, que viram discos, que tocam cacofonias. Em Cacofonia Disco (2021) [p.xx] a carteira sai da sua condição originária e reaparece como toca-discos. O disco de vinil dá lugar ao disco de madeira, também fabricado com microssulcos que são gravados a laser diretamente sobre o tampo, vibrando na horizontal e em um canal, tornando audíveis os textos das cacofonias narrados oralmente. Como na Lousa, os textos não se apresentam facilmente à compreensão, devido à sobreposição das falas e a baixa altura da emissão sonora.
Sexta notação
O círculo. Um ponto de escuta
E se o exercício de se relacionar com a obra de arte solicitar também a mediação do corpo, convocando-o a ressoar ou se transformar em um corpo percussivo? Na galeria de arte, abre-se uma espécie de “sala de estar”, denominada de Ponto de Escuta (2022) [p.xx], que consiste, em formato, na reunião de cadeiras procedentes das salas de aulas de escolas públicas do Distrito Federal, que são dispostas em círculo. A obra foi formulada tendo por eixos o desejo de ativar a escuta no contexto expositivo, e fora do ambiente escolar (espaço cultural) e o interesse em exercitar questões relacionadas à ideia de círculo de cultura, que é parte do método de alfabetização de Paulo Freire.[10]
O Ponto de Escuta se converte em lugar na medida de sua ocupação sonora, por meio de ações que instigam plurivocalidades e pluripensares. Como bem enunciou o filósofo francês Jean-Luc Nancy, o sonoro “traz consigo uma forma”[11], forma essa que o som alarga, amplia, torna espessa. O Ponto de Escuta é um “work in progress” e seu desenho está, para sempre, em construção. Estar em escuta nesse ´lugar-obra` instaurada no coração da galeria, denota uma espécie de contraponto ao estado de “professor espião”, aquele que escuta em segredo, um dos agentes que Olivieri encarnou enquanto esteve nas escolas.
Por ser um lugar para a comunicação aberta o Ponto de Escuta se quer como uma “estrutura reflexiva”[12], ou uma “caixa de ressonância”[13] para falas diversas, que repercutem na escuta dos que se propõem a sentar ali. Não há, como na concepção do “círculo de cultura” paulofreiriano, uma palavra geradora para ativar o ponto de escuta, mas sim situações geradoras que são provocadas pelo o que está em exposição. Sendo as obras traduções poiéticas de vivências no cotidiano escolar, cujas circunstâncias são compartilhadas por muitos visitantes, a proximidade com a proposição de Freire se efetiva, na medida em que ocorrem aprendizados, descolados do ambiente escolar e sem a presença da figura de um professor, mas a de um coordenador – que pode ser tanto o artista, como também alguém que se proponha a ocupar esse lugar, em uma dinâmica de aprendizado que se faz por meio da “reciprocidade de consciências”[14] .
É claro que o se propõe com o Ponto de Escuta não é ensinar e aprender com o mesmo propósito que nos apresenta Freire em seu Círculo de Cultura porque, afinal, estamos tratando de ´ocupar` uma obra de arte, em um contexto voltado para a exposição e recepção de arte, que é a galeria e o centro cultural. A obra não é ´A` sala de aula e, sim, uma experiência com a obra, uma construção que remete à coisa, mas não é a coisa propriamente dita: é algo que pode vir a ser, a depender do tipo de construção de vínculos que ocorrem por meio das proposições para as quais Olivieri aponta como artista professor, durante a exposição e que são ali partilhados tornando significativa a relação com o objeto que, de acordo com Freire, para ser cognoscível precisa de mais do que uma “simples relação do sujeito cognoscente com o objeto cognoscível”[15]
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Há, portanto, deslocamentos perceptivos provocados pelas obras de Olivieri: corpos sonoros em arte, inventados no processo de “transpor escutas”, como declara o artista. As obras são potencializadas por falas, escutas e escritos que expandem, cada um a sua maneira, noções previamente existentes sobre o som. Estamos, afinal, lidando com uma exposição de objetos que configuram um campo experimental, motivado por exercícios de sondiagem, práticas que aspiram a liberdade e à superação de muitas “barreiras sonoras” que se formam na escola e que vão, ao longo do tempo e a depender dos níveis de ruídos e cacofonias presentes, formando bolhas que previnem as escutas plurissonoras e a transformação da escola em “espaço-fluxo”, noção que o artista contrapõe à ideia corrente de escola como espaço imutável. Esses objetos plurissonoros – reinvenção do material e do imaterial do cotidiano escolar –apresentados e ativados no encontro com sujeitos em um espaço não escolar, ressoam, apontando para outros tipos de paisagens de aprendizado, sintonizados com o percurso que Olivieri traçou como professor-artista no qual, para ele, “a escola são mundos” e o estar extraclasse é uma forma de eclipsar os tempos-surdos.
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[1] O “tempo-surdo”, de acordo com o artista, acontece quando se abafam as vozes que destoam em meio a situações aonde se busca a imposição pelo controle narrativo.
[2] OLIVIERI, Luiz. Extraclasse: sondiagem e escuta como métodos de invenção. Orientação Prof. Dr. Christus Nóbrega. Brasília: UnB, 2021. https://repositorio.unb.br/handle/10482/41907
[3] Trataremos este campo como Arte Sonora para fins deste texto. Contudo, o som, ao ter se tornado objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento nas últimas décadas, tem recebido diferentes denominações, a depender do seu uso. De acordo com Araújo, as variações podem tomar a denominação de “cultura auditiva” e “ estudos do som”. ARAUJO, David D.A. de. Limites da escuta: epistemologias do sonoro na música concreta, na ecologia acústica e nos estudos do som. São Paulo: ECA/USP, 2019. Orientador, Fernando Henrique de Oliveira Iazzeta. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-26072019-092642/pt-br.php
[4] Este é um dos pontos que foram elencados por Raoul Vaneigem, em 1966, um dos idealizadores do movimento Internacional Situacionista, como um dos assuntos coletados em debates informais que aconteciam com frequência entre grupos de jovens intelectuais, artistas e estudantes nos últimos anos da década de 1960. P.18. Situacionista: teoria e prática de revolução. SP: Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna).
[5] Judith Butler usa esse termo ao escrever sobre o pós-modernismo, política, gênero e sociedade. BUTLER, Judith. “Contingent foundations: feminism and the question of ´ postmodernism´”. From modernism to postmodernism: an anthology. 2.ed. NJ: Blackwell Publishing, 2003. P. 390-401.
[6] As duas referências de base mundial são os trabalhos dos franceses Pierre Schaeffer (1910-1995), a quem se atribui à denominação do termo “música concreta”, e de Pierre Henry (1927-2017).
[7] Para fins deste texto, aborda-se a “música concreta” muito superficialmente, a fim de situar o leitor em um conjunto de práticas de investigação sonora que são parte de um contexto mais amplo aonde estão localizadas, também, as experiências contemporâneas em Arte Sonora. Apesar de ser uma expressão que data da década de 1940, ela ainda gera debates quanto a sua significação e definições, ao ser tratada pela perspectiva da música.
[8] OLIVIERI, op.cit., p. 85.
[9] Esse objeto foi feito em colaboração com o colecionador Walter Arensberg. O original encontra-se no Philadelphia Museum of Art (EUA).
[10] O Círculo de Cultura, concebido na década de 1960, integra o corpo de dinâmicas que compõe a metodologia de Paulo Freire, cujo propósito, em termos genéricos, é o de alfabetizar pelo diálogo horizontalizado entre educando e educador, tendo como mote temáticas relativas ao universo cultural dos participantes.
[11] NANCY, Jean-Luc. “À escuta”. In: Rev. Outra Travessia. UFSC, p. 160, 1º sem. 2013.
[12] Ibid., 164.
[13] Idem.
[14] FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer sua palavra. In: FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. RJ: Paz e Terra, 1987. p.12.
[15] FREIRE, P. Extensão ou comunicação. RJ: Paz e Terra, 2013. p.73