Fábio baroli
(texto para catálogo)
Matutar-se.
O conjunto de pinturas selecionadas para compor a mostra Deitei para repousar e ele mexeu comigo privilegia aspectos relacionados ao que o artista denomina de “Antropomatutologia”, ou seja, o conhecimento do matuto em contexto. A curadoria optou por reunir a produção pictórica de Fábio Baroli iniciada em 2007, buscando entrelaçar a pesquisa do pintor sobre o imaginário regional e o da curadora, sobre história da arte brasileira. A mostra expõe pinturas de séries realizadas entre 2013 e 2015, que tem como eixo a sua vivência em Uberaba, Minas Gerais, que é a sua cidade natal. As séries escolhidas foram Muito pelo ao contrário (2013/2014), Meu matuto predileto (2014), O vendedor de galinhas (2014), A terra do Zebu e a casa do caralho (2014) e Quando a seca entra (2015), além da pintura que empresta o título à exposição: Deitei para repousar e ele mexeu comigo (2015).
Este recorte de obras procurou favorecer o olhar para a dimensão rural da vida, da qual, nós que lemos este texto, que vamos às galerias, aos museus, vivemos em metrópoles, estamos normalmente apartados. Como apartados estamos de outras camadas da vida, pelo parcelamento do tempo ao qual estamos submetidos [ou nos submetemos]. Ou ainda, apartados pelo excesso que consome nossos dias, como o fogo consome a madeira. Houve um desejo curatorial, corroborado pela expografia, de buscar intensificar o olhar contemplativo sobre a pintura, ajustando-se ao tempo interiorano e aos hábitos corriqueiros do viver e do falar, onde as horas passam com vagar, onde os eventos não se alinham de forma tão imediatista como ocorre com os fatos que governam a vida nas grandes capitais.
A linguagem coloquial e popular e as relações que se estabelecem entre os indivíduos durante os momentos de sociabilização informam e constituem a fabulação visual do artista sobre sua vivência, a partir do interior do Brasil, e vai ao encontro de uma indagação do poeta cuiabano Manoel de Barros, em Menino do Mato: “Visão é recurso da imaginação para dar às palavras novas liberdades? ” Sem que fosse a intenção do poeta, lá estava, em forma de questionamento, uma frase indicando algumas vias para reflexão sobre a prosa visual, repleta de trocadilhos, que Fábio Baroli nos apresenta nesta exposição.
Impossível, ao nos debruçarmos sobre o que Baroli faz, ao pintar de modo figurativo e realista, não pensarmos sobre a relevância da pintura hoje, em um cenário de urgências tecnológicas, que embolam o olhar e o pensamento na pressa do ver, do processar, do considerar. Movimento por demais dinâmico para a pintura, que pede um olhar pausado; algo como o que Alberto Tassinari coloca ao refletir sobre os textos fenomenológicos acerca da pintura, escritos por Merleau-Ponty: “Para que se olhe de um lado a outro numa só percepção é preciso que o presente, antes de ser um instante, seja uma espécie de região com contornos vagos onde o futuro se escoa em passado como que por todos os seus lados. ”[1]
Deixar em aberto uma vaga para o olhar (mente, espírito) faz parte de um dos procedimentos de Baroli ao construir seu espaço pictórico. Generoso, o artista entende que a pintura pode ser um campo aberto a interpretações: constitui-se pelas relações entre formas, planos e manchas e, mesmo que a (ideia de) realidade esteja ali figurada, algo nela lhe escapa, pois a obra é campo de mobilidade para o pensamento. O artista resolve esse insolúvel ao deixar campos não preenchidos, ao associar imagens de procedências distintas em um mesmo plano, ao embaralhar a sua ortogonalidade e “recortar” a tela por meio de geometrias, ao deixar manchas e respingos aparentes.
Mesmo o fotográfico dispõe-se a auxiliar nessa dissolução das formas e dos planos, construídos para apontar a instabilidade do real, nos impelindo a vê-la como ela é, de duas maneiras: a fotografia entra em cena como dispositivo de base para permitir ao pintor registrar situações que se tornarão referência para novas pinturas, enquanto também se mostra como linguagem. Juntas, pintura e fotografia fazem uma aliança para enfatizar e embaralhar o real.
E, se o pintor, ao ativar o plano pictórico, transforma-o também em campo cinético, proporciona condições para que o olhar caminhe por sua superfície. Essas pinturas provocam durações no tempo, alargamentos perceptivos.
Nesta exposição há histórias sendo contadas, em instantâneos, que vão se desvelando aos poucos. Vamos a ela(s).
Paisagem como anteparo.
É curioso pensar nos trânsitos temporais que conectam sujeitos a espaços, enviesando a história. Cá estão as pinturas de Baroli, em território que já foi rota para os desbravadores vindos de Uberaba em direção a Goiás no século XVIII. Agora, no processo de migração, é o artista que troca com o lugar bens artísticos e culturais trazidos consigo. Torna-se, de acordo com o literato peruano Cornejo Polar, um “sujeito que recebe a um só tempo, o dom e a condenação de falar a partir de mais de um lugar”, afirmando-se “como sujeito que reside, em parte, em não esquecer nenhuma parada do seu itinerário, em não aceitar que o privem da liberdade a partir de vários lugares”.[2]
O retorno para Uberaba, em 2012, após dez anos fora, foi crucial para estabelecer novas bases para a sua pintura. Baroli reinicia sua estadia em sua cidade natal ainda mantendo vínculos com o Rio de Janeiro, tão metropolitano. Dessa situação de passagem/retorno, surgem as pinturas “Intifada” e Vendeta”. [3] Como o artista diz: “o lugar, de fato, influencia o modo de pensar e esta influência se reflete no trabalho.”. A cada fase de passagem e contaminação pelo lugar de habitação, vão se somando temáticas que, mixadas, coladas e assembladas, dão a tônica para o conjunto de sua produção artística. “Pra lá de dois pé de Gabiroba”, de 2015, políptico site specific realizado para esta exposição funciona como um índice que revela o estatuto da paisagem para o pintor, como foi Veneza para Canaletto, L’Estaque para Cézanne, ou é o Rio de Janeiro para Luiz Zerbini.
Pintar a paisagem é articular a relação entre o tempo de quem vive o lugar e o percebe, compreendendo que nunca será possível abarcá-la de todo, pois o que se vê é uma parcela, um lapso do real, sempre imaginado. É dobra na memória do artista. “Pra lá de dois pé de Gabiroba” nos conecta com muitas outras paisagens já vistas e com as quais nos identificamos, mas que também nos apresenta as saídas encontradas por Baroli resultantes de idiossincrasias do artista em relação ao tema, singularizando-a. Nessa extensa paisagem de muitas partes, o artista costura planos perspectivos e pontos de vista, deixando espaços incompletos (parcialmente “preenchidos” com pintura diretamente sobre a parede da galeria, proporcionando a ideia de continuidade e presença ao que lá está).
Assim como escreveu Mario Pedrosa, em 1958, ao comentar sobre a pintura brasileira, a sensação que perdura: “é do encontro com os mesmos problemas e das soluções pessoais que para os mesmos acham, que se estabelece verdadeira continuidade no tempo da evolução pictórica nossa”.[4] A grande paisagem, idealizada especialmente para a exposição, situa-se à entrada da galeria, convidando o espectador a entrar na cena rural que o recorte curatorial estabeleceu, a partir do conceito cunhado por Baroli: a Antropomatutologia.
Definir essa viagem no tempo como “antropomatutologia” foi, de acordo com Baroli, uma tentativa de atualizar o tema, alocando o matuto como sujeito de uma narrativa contemporânea. Iniciou o processo executando pinturas motivadas por anedotas e trocadilhos típicos da região de Minas Gerais e seguiu transitando e prosseguindo em uma elaboração pictórica que, ainda baseada na linguagem caipira, foi sendo continuamente encadeada ao termos de seu interesse desde 2007: erotismo, transgressão, imaginário infantil no interior, regionalismo, retrato, paisagem, fotografia, colagem e apropriação.
O matuto em contexto expositivo.
O fora.
A condição de ser outro é um aprendizado. Baroli, ao circular de um lugar a outro em seu percurso profissional vai, nesse movimento de deslocamento, conjugando experiências e percepções – e aí não estamos falando unicamente da vivência pessoal, mas da matéria que conecta sujeitos em escala nacional e global – para torná-los elementos da pintura. Trazer o “matuto” para a galeria de arte é retirá-lo do isolamento ao qual está histórica e socialmente renegado e (re)colocá-lo dentro de um campo de visão não documental, como costuma estar e, sim, o artístico, pois, afinal, estamos falando em pintura.
As reviravoltas históricas transcendem tempos e espaços, conectam lances na história da arte e nos levam, como num salto, ao encontro de uma certa pintura brasileira, de cunho regionalista do século XIX. As pinturas de Baroli, figurativas e contando com o apoio da fotografia como dispositivo de apoio, atestam a sua fixação ao campo do verossímil. Há quem diga, ao olhar para o seu trabalho, particularmente à pintura que faz referência ao regional, que estamos diante de uma pintura anacrônica, tanto pelo grau de realidade figurativa com a qual nos deparamos (como se a sua pintura estivesse fora do registro do tempo e do espaço e pertencesse a um momento ultrapassado da história da arte), como pelo assunto que elege como foco. Se aceitarmos essa hipótese, podemos arriscar ser exatamente esta colisão espaço-temporal, que tira o trabalho do registro esperado, que encontramos no contemporâneo da arte, ou uma de suas facetas.
Almeida Junior[5] é o pintor brasileiro, em sua fase naturalista e regional, que mais rapidamente vem à mente quando passamos a querer tratar das relações que conectam uma ponta a outra dessas pinturas. Outros poderiam ser os pintores da mesma época, apropriados para o diálogo com Baroli, mas Almeida Júnior, pela forma menos romântica e ufanista com a qual conduziu a temática regionalista, melhor se ajusta a essa empreitada.
Pensar nas possibilidades que conduzem à reflexão e que vinculam este momento do trabalho de Baroli à historiografia da arte brasileira ontem e hoje foi basilar para formular o conceito curatorial e, a pintura “Caipira picando fumo”, de Almeida Júnior, tornou-se a imagem ideal para começar a conversa. Meu matuto predileto, de 2013, pintura pertencente à série homônima, tornou-se o ponto focal e irradiador do eixo condutor da curadoria e expografia, para arranjar novas associações entre as pinturas, também vinculadas à sua qualidade técnica e formal.
O “estar fora”, que muito constitui a vida no interior, se mantém para além da paisagem natural que prenuncia a exposição. Adentrar o espaço expositivo não significa encerrar-se, mas manter-se no espaço externo da pequena cidade, só em novas contextos. Em Cê gosta de laranja, de 2013, e, Não mexo mais engato, de 2014, fragmentos do dia e da noite apresentam modos coletivos de ser e estar. Convivem com a pintura Vazou na braquiara, de 2014, que age no espaço como o “reverso” da paisagem bucólica e contemplativa que nos acolhe na entrada, sinalizando o caminho que nos leva à Uberaba onde galos e galinhas (Lourdinha, Chris, Lassim e Madá, de 2013)[6] ainda ciscam e nos acompanham durante o passeio pelo “meio ambiente” da galeria.
O dentro
Mas o trânsito pela cidade e pela vida caipira não se extingue na socialização e comunicação de grupos ao ar livre. A face luminosa da vida é compartilhada pelo lado sombrio da existência, tanto na cidade como no campo, independente de credo, origem, etnia etc. São oposições como o são os jogos de palavras, do qual fazem parte os trocadilhos e maneirismos linguísticos. Tal qual Baroli cita, parafraseando seu pai, Basílio, representado na políptico que empresta nome à exposição: “O problema da pintura é a tinterrada”. E, como tudo tem dois lados, Baroli emenda: “Se o pronunciamos rápido, ouvimos “tinterrada”; sob o prisma do trocadilho uma “enterrada em ti”. [7]
O presente, tão dinâmico que presenciamos no núcleo anterior, encontra o passado em outro momento da curadoria/expografia. Nele estão pinturas que compõem uma constelação mais subjetiva, pertencentes ao universo íntimo do artista, mas com as quais também nos identificamos. Nessas pinturas, o clima de melancolia e de rememoração prevalece. Aqui cabe ressaltar o papel desempenhado pela fotografia que, mesmo mantendo a função de dispositivo de registro para as pinturas, cola-se com mais vigor às imagens que deram origem a essas pinturas em especial.
Tanto em Quando a seca entra, de 2015, como em Deitei para repousar e ele mexeu comigo, de 2014, passamos a habitar o campo do íntimo. As fotografias dos álbuns de família e do pai ausente transformam-se em pintura para retornar - por meio de suas vinculações a um campo afetivo de memória tão caro ao pintor e a todos - novamente como fotografia no imaginário de quem as vê. Sensação reforçada pela matização de ocres, brancos e cinzas que Baroli aplica a essas imagens. Essas pequenas pinturas, dispostas a partir de uma lógica arbitrária/sensível, possibilitam ao espectador elaborar uma série de associações narrativas. E, como se para conviver com perdas, carecêssemos de uma expressão que delas desse conta, nos deparamos com Toca uma pra mim, de 2015, objeto de um triunfo solitário, embalado por uma melodia que só temos acesso ao compartilhar com os sujeitos a solidão da cena.
A pintura continua sendo projeção de uma realidade ainda por vir, porque dela sempre sabemos pouco. E o pintor sonha, embaralhando tempos e espaços que transitam entre o que fantasia e o que vive. Na sala escura, somos plateia em uma sessão de cinema: uma batalha acontece no pátio da igreja de São Domingos, em Uberaba, durante à noite. Sob a influência das cores quentes - amarelos e laranjas – e de tons escuros: pretos, azuis e violáceos, que tudo absorvem, a cena de A terra do zebu e a casa do caralho, de 2014, se desenrola transformando-se, paulatinamente, à nossa frente. O embate parece ocorrer em meio a temporalidades diversas, reforçadas por “retalhos” de planos associados e justapostos - cenas sobre cenas - que conferem alta carga de energia ao quadrilátero que contém, a duras penas, seus personagens e objetos. As construções arquitetônicas - igreja e arranha-céus - em extremidades opostas, demarcam a zona de conflito, indicando que a coexistência pacífica de dois mundos só é possível no reino da utopia e que o relógio permanece contando as horas. O espectador também é personagem: testemunha de um presente sempre contínuo, que a pintura revela a cada vez que para ela se olha. Será essa uma pintura de presságio?
Mas, do futuro algumas coisas são certas: sabemos o que galinhas e galos ainda não sabem, mas que a vó Dica, representada em momento de total satisfação com recém-feito, já se encarregou de resolver. Simples assim.
TASSINARI, Alberto. Quatro esboços de leitura. In:_MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac&Naify, 2004. p.158.
[2]. Cornejo Polar, Antonio. Una heterogeneidad no dialectica: sujeto y discurso migrantes en el Peru moderno. Revista Iberoamericana. Vol. LXII, n.176-177, Julio-Diciembre 1996, 840.
[3] No ano em que retorna, Baroli inicia as pinturas “Intifada”, um tríptico de 220x480 cm, retratando 24 crianças e adolescentes que, voltados para o espectador, bloqueiam uma rua em Uberaba, munidos de armas de brinquedo e prontos para o levante. E “Vendeta”, um conjunto de pinturas menores, com closes de cada uma das crianças representadas no tríptico, com suas “armas”, causando a aproximação e reforçando a tensão presente no conflito expressado pela pintura.
[4] PEDROSA, Mário. Problemas da pintura brasileira. In: Acadêmicos e modernos. Textos escolhidos III. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 2004. p. 300.
[5] José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), pintor e desenhista brasileiro, nascido no Estado de São Paulo.
[6] Estas quatro pinturas pertencem ao conjunto “O vendedor de galinhas”, pintura de 2014.
[7] Trechos extraídos do texto de Fábio Baroli para introduzir a série Muito pelo ao contrário.
Sem título.
Série O Vendedor de Galinhas e Meu Matuto Predileto. Óleo sobre tela.
150x110 cm,
2013.